quinta-feira, 30 de abril de 2015

Era uma vez a Neonatologia



30 de Abril

Às vezes pergunto-me quando é que isto vai acabar, mas sempre que faço essa questão aparece outra barreira.

No dia em que nasceste Luísa e quando estava a ir para o Hospital pensava que tudo ia acabar bem e rapidamente e que dentro em breve estaríamos as duas em casa. Ver-te seres-me levada, logo dali, da sala de partos foi muito doloroso. Nem ao colo te pude pegar. Fiquei assim de mãos a abanar. Sem filha nos braços.

Nessa noite contorcia-me de dores e de medo. O teu pai mandou-me uma foto tua na incubadora a dizer que dormias como um anjinho. Para mim parecias mais uma Branca de Neve na sua redoma de cristal à espera do beijo que seria o teu elixir.

No dia seguinte fui conhecer-te. Sim, porque os dez segundos que estiveste em cima da minha barriga não souberam a nada e o beijo que te dei não foi o suficiente para sentir o teu cheiro, o teu calor de bebé pequenino.

A médica explicou-nos que a tua vinda para a Neonatologia deveu-se a terem detetado logo após o nascimento que não estavas bem. Gemias e tinhas o nível de oxigénio a 40 por cento.
Um “bicho” mau do corpo da mãe tinha passado para o teu e agora estavas doente a precisar de muitos cuidados.

Fizeram-te análises, algumas tiveram conclusão, outras ainda aguardamos os resultados nove dias depois… O “bicho” era mesmo mau.

Ver-te ali ligada à incubadora pelos elétrodos, com um cateter na mão e seres tão pequenina custou tanto, mas tanto. Os bebés são tão indefesos e para uma mãe sentir que pouco ou nada pode fazer é terrível.

Felizmente existem os serviços de Neonatologia e as pessoas que lá trabalham são mesmo especiais, acredita. Todas as enfermeiras, auxiliares e médicas que se cruzaram contigo têm um dom, foram feitas para cuidar e amar bebés pequeninos ou doentes como tu. O trabalho delas é tão cheio de resultados, que durante os dias que lá estiveste vimos a equipa receber várias visitas de bebés e outros já crescidos que tinham passado lá os primeiros dias ou meses de vida.

Durante os dias em que estiveste na Neonatologia estiveste muito bem guardada e foi com muita alegria que te vimos passar da incubadora fechada para o berço. As médicas lá iam dizendo que estavas a evoluir bem, mas…um dia de cada vez. Os antibióticos estavam a enxotar os “bichos” maus do teu corpo a pouco e pouco e ias ganhando peso.

Nos primeiros dois dias foi um desespero para a mãe nem te conseguir pegar ao colo, mas na sexta-feira, quando a enfermeira C. perguntou à mãe se queria fazer canguru contigo foi como se tivesse chegado ao céu. Os bebés pequeninos precisam de muito calor e afeto. Bem, na verdade, os outros bebés também precisam disso tudo, mas esses não estão presos por fios nem guardados em incubadoras e podem ser pegados ao colo sempre que as mães querem. Agora tu não podias. Mas a enfermeira C. tirou-te da incubadora, mandou a mãe abrir a camisa e encostou-te ao meu peito e estivemos assim uma tarde inteirinha. Soube tão bem. O pai ficou com um bocado de ciúmes, mas ele já tinha pegado em ti ao colo e a mãe não.

Depois quando começaste a mamar o leite da mãe foi outra barreira superada, pois esse leite é muito melhor que os de lata e assim começaste a ficar mais forte e mais gordinha. Além disso, era sempre a perfeita desculpa para de três em três horas te ter ali juntinho a mim e irmo-nos conhecendo uma à outra.

Os teus primeiros banhos e fraldas também te foram dados pelas enfermeiras da Neo, mas tinha de ser. Dentro da incubadora não é fácil para uma mãe de primeira viagem, mas quando passaste para o berço foi um consolo dar-te banhinho e mudar as fraldas, mesmo aquelas com cocós extremamente mal cheirosos.

Na Neo ninguém se esquece do dia em que fizeste um cocó tão mal cheiroso que a auxiliar J. até o sentiu no corredor e nos rimos todas. Sim, porque estar na Neo não é só tristeza. Aliás, pelo contrário. Estar na Neo é o princípio de muitas histórias de sucesso, como a tua e como a dos outros bebés ao teu redor. Lá, cada mãe e pai concentra-se no seu bebé e só nele. Ninguém fala muito sobre os problemas de cada um, porque toda a gente à sua maneira já tem com o que batalhar. Conhecemos bebés que nasceram com 500gr e agora estão bem e quase prontos a ir para casa. Conhecemos bebés de termo que também tiverem de ir para a Neo devido a complicações durante o parto. Cada berço, cada incubadora tinha a sua história.

A rotina da Neo e a presença constante das enfermeiras dá uma segurança muito grande às mães e pais. No dia em que, sem contar, a médica disse à mãe que ias ter alta e subir à Pediatria para terminar o tratamento fiquei com o coração nas mãos. Não queria mesmo que te tirassem daquele cantinho onde há uma enfermeira para cada dois bebés e vocês estão tão protegidos.
No início pode ter sido um choque teres ido para a Neo, mas com o passar dos dias passei a gostar daquele lugar, onde os milagres acontecem, acredita!

Quando subimos à Pediatria nem consegui dar um sorriso às novas enfermeiras. Não queria mesmo estar ali, mas como diz o ditado o que não tem remédio remediado está e tinha de aceitar a nossa nova condição.

Agora, neste novo quarto, a mãe sente saudades da companhia das outras mães, das enfermeiras e das auxiliares. É bom saber que estás na Pediatria porque estás a ficar melhor e dentro em pouco vamos para casa, mas aqui o tratamento é mais impessoal, aqui és mais uma e lá em baixo eras a Luísa. Toda a gente sabia o teu nome.

Por isso, queria deixar aqui um grande obrigada a toda a equipa da Neonatologia, pois elas foram os braços da mãe quando não te pude pegar e foram os teus anjos da guarda, quando o pai e a mãe não podiam fazer mais do que apenas observar-te.

E um dia, tal como os outros meninos e meninas, também nós vamos visitar as “tias” da Neo e ter uma foto no quadro na entrada, para que outras mães e pais, tal como os teus, saberem que a Neonatologia é um sítio cheio de esperança e histórias bem sucedidas.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A Luísa fez jus ao cognome e apressou o nascimento



24 de Abril


21 de Abril. O dia em que mudaste a vida do teu pai e a minha para sempre.
Há umas semanas apelidei-te de Apressada e não poderia ter escolhido melhor nome, porque de facto foste apressada em tudo e vieste ao mundo precisamente um mês antes da data prevista e quando eu menos esperava.

Mas comecemos pelo princípio.

A noite de segunda para terça-feira não foi fácil. Depois de duas idas à casa de banho, às 04h já não conseguia dormir e para não acordar o teu pai fui para o sofá da sala. Não sentia dores nem nada de semelhante, apenas não tinha sono apesar do cansaço. Agora começo a pensar que talvez fosse o corpo da mãe a começar a entrar em ebulição.

Já na terça-feira, depois do almoço, comecei a sentir uma espécie de “cólicas”, o que para mim era normal depois do almoço. Com o teu crescimento foste empurrando os meus intestinos sabe-se lá para onde e depois das refeições tinha sempre dores. Mas começaram a ser tão intensas que comecei a desconfiar e a partir das 14h fui controlando de quanto em quanto tempo surgiam. Ainda consegui passar pelas brasas, o que na minha cabeça quis dizer que aquilo não eram nada contrações, caso contrário não era possível adormecer.

Às 16h quando me levantei do sofá para ir à casa de banho senti que fazia xixi pelas pernas abaixo. Nessa altura o meu pensamento foi ou rebentaram-me as águas ou já não me sinto e acabei de fazer xixi mesmo estando a apertar…

Nada de pânico. Nada de histeria. Só por descargo de consciência sabia que tinha de ir ao Hospital. Liguei primeiro à minha médica, mas não atendeu. Depois liguei ao J. para vir para casa para irmos ao Hospital, pois eu achava que possivelmente me tinham rebentado as águas. Em seguida liguei à minha amiga J., mais experiente nestas andanças, a ver o que ela achava da situação.

Por esta altura, nos filmes, as pessoas ficam alteradas e a correr de um lado para o outro. Não vale a pena! A calma é a melhor conselheira.

Até o J. chegar basicamente estive sentada na sanita, porque sempre que me levantava parecia surgir um rio de dentro de mim. A esta hora já acreditava que me tinham rebentado as águas e que a Luísa iria nascer. Se fiquei nervosa? Curiosamente, não. Nunca pensei conseguir manter a calma por completo, mas consegui. Talvez o facto de conhecer bem os cantos à casa tivesse ajudado.

O J. agarrou nos três sacos com todas as tralhas para a maternidade e às 16h30 já estávamos a dar entrada pelas Urgências, seguindo depois para o Núcleo de Partos. Entretanto, consegui falar com a minha médica que logo por azar não estava de serviço, mas que ligou às colegas a avisar que eu ia dar entrada. Alívio…

No Núcleo primeiro fui observada pela Dr.ª C. “Já vejo cabelo”, disse-me ela. Ora bolas, já?? Eu sabia que uma vez que já tinha 3cm de dilatação há quase duas semanas era provável que agora tivesse mais, mas daí até já se ver o teu cabelo, Luísa…
É nesta altura que uma pessoa começa a ter medo que a criança nos escorregue pelas pernas abaixo. Era bom, era. Talvez lá para o terceiro ou quarto rebento… Estou a brincar J.!

Por esta altura comecei a sentir umas ligeiras dores, mas antes de passar à sala de partos ainda uma enfermeira teve que me fazer uma série de procedimentos. Só que nesta fase as minhas contrações começaram a sério e fazerem-me perguntas tipo, quando foi a minha última menstruação ou o dia da minha primeira ecografia é tortura. Nesta fase apeteceu-me partir para os insultos. “Mas que c****** queres tu saber disso agora, quando eu estou aqui toda molhadinha e a torcer-me com dores?”. Mas não disse, só pensei e devo ter feito aquele olhar da menina do Exorcista antes de rodar a cabeça.

Depois de umas 20 questões, pedi à enfermeira se ainda tinha tempo para ir à casa de banho que estava aflitinha para fazer o número 2. “Nem pense, mulher! Isso é o bebé a querer sair, você não pode ir à casa de banho”.

Então ainda há meia hora entrei aqui toda serena e agora já me estou aqui a contorcer e a dizerem-me que já é o bebé a sair? Não percebo. Não dizem que normalmente o primeiro filho demora a nascer e que às vezes as mães estão horas, dias com as contrações? Já não entendia nada…

A enfermeira tentou que eu me levantasse da cadeira para ir para a sala de partos, mas tarefa impossível. As minhas dores eram tantas que eu não conseguia estar em pé. Tive de ir de cadeira de rodas. Por esta altura, já tinham chamado o J. que até aqui tinha estado na sala de espera.

A chegada da Luísa era agora mesmo uma realidade. Não havia escapatória.
As dores que eu sentia eram horríveis, cada vez mais fortes, cada vez mais frequentes. Davam-me uns 10 minutos de descanso e voltavam em toda a sua potência. Eu só pensava em todas as mulheres que tinham tido filhos sem anestesia. Eu estava em desespero. Nunca tinha sentido nada assim. Intenso, carnal, que se apodera de todos os nossos átomos.

A sala de partos surpreendeu-me por se parecer a um quarto normal, cuja única diferença é ter a cama com os cavaletes, uma série de máquinas e uma espécie de salinha para o bebé.
Começaram-me a preparar e quando eu vejo a entrarem no quarto as duas enfermeiras que eu menos gostei durante os meus dois internamentos pensei que era gozo. Tanta enfermeira naquele serviço e tinham de me calhar a mim e logo as duas? Só podia ser castigo.

Com as contrações cada vez mais juntas chamaram a médica anestesista. Epiduraaaaal! Pensava eu. Minhas queridas, anotem bem isto nos vossos diários, grafitem nas paredes do quarto, mandem a NASA escrever na Lua: NUNCA FAZER UMA TATUAGEM AO FUNDO DAS COSTAS! NUNCA!
“Ora que coisa bonita aqui tem. Mesmo no sítio indicado”, disse ironicamente a médica anestesista sobre a minha tatuagem. Fiquei confusa, porque a minha médica tinha-me dito que a epidural era dada mais acima e que não seria problema. Silly me! (Luísa, nem penses em fazer uma tatuagem nas costas. A mãe não deixa, é pelo teu bem.)

Não sei se essa foi mesmo a razão, mas a médica não me conseguiu dar a epidural e teve de ir para o plano B: uma raquianestesia. Nunca tal tinha ouvido, mas queria lá saber desde que me aliviasse as dores, por mim estava tudo bem.

Depois de ter uma enfermeira a agarrar-me nas pernas e na cabeça, enrolando-me como se eu fosse um caracol, para eu não me mexer quando tinha contrações e a médica me dava a anestesia a ausência de dor quase imediata levou-me ao nirvana. Pensei que estava no céu.

Por essa altura, mandaram entrar novamente o J. que não pode assistir à anestesia, como é habitual, e a médica explicou que com aquela anestesia teriam uma janela de cerca de duas horas para fazerem o parto. Iam-me deixar a descansar um bocado e dali a um hora estariam de regresso.

Entretanto, num quarto ao lado uma mãe começou mesmo a dar à luz e foi toda a equipa assistir a senhora. Ficamos os dois sozinhos.

Não sei o que se passou, só sei que passado meia hora de me terem dado a anestesia comecei a sentir de novo dores na parte esquerda do corpo, apesar das pernas estarem completamente paralisadas. Oh diabo! Mas isto não ia durar pelo menos duas horas? Não era bom sinal.

Entra então no quarto a enfermeira com o mesmo nome da minha Apressada e vendo que eu estava já com muita dilatação e a ter novamente dores iniciou o parto. Mandava-me puxar, quando aparecia no monitor uma contração e ia posicionando a bebé para que saísse mais facilmente. Foi este anjo, que enxotou as duas enfermeiras que eu não gostava nada e que entretanto já tinham feito o outro parto e vinham cheias de gás para mim. Back off, que é a enfermeira Luísa que vai tratar de mim!!

Com o outro parto terminado, regressou ao meu quarto a equipa toda. Basicamente era eu deitada na cama, o J. ao meu lado, duas médicas de frente e umas dez pessoas a olhar, entre enfermeiras, pediatra, estagiárias. Só faltavam as pipocas.

Depois da enfermeira Luísa ter conseguido posicionar melhor a minha Apressada, a Dr.ª S. começou a trabalhar comigo. Puxe agora. Encha os pulmões de ar e faça força. Respire fundo e força. Puxe o máximo que consiga. Pai empurre a barriga da mãe para a bebé não subir. Faça força na barriga. Puxe mais, mais. Agarre-se às pernas.
Em pouco tempo estava completamente estourada, sem pinga de força e a cabeça da bebé ali a espreitar. Foi hora de chamar a amiga ventosa. Eu sei que muita gente estremece com esta palavra, mas para mim foi a abençoada ventosa.
Com a ventosa na cabeça da bebé, fiz força só mais uma vez e a rapariga estava cá fora.

Ter uma criança é a tarefa mais difícil do mundo. Suga-nos toda a energia do corpo, obriga-nos a dores excruciantes, levam-nos ao limite do inimaginável, absorve-nos, mas depois – e agora vêm as frases feitas – quando vemos aquele pequeno ser à nossa frente fica tudo bem.

A primeira coisa que vi da Luísa foram os pés, quando a pousaram em mim. Logo cortaram o cordão umbilical (nem deram oportunidade ao J. de o fazer, não sei porquê) e levaram-na para o espaço ao lado. Mal ouvimos o choro dela, ficamos os dois mais sossegados.

Mas alto lá, que o parto ainda não terminou. Já quase sem anestesia nenhuma no corpo ainda tive que expelir a placenta (doeu-me horrores) e em seguida começou a verdadeira renda de Bilros, como lhe chama a minha amiga J., que é quando as médicas pegam na agulha e fio e começam a coser-nos. Eu não tinha um pingo de força em mim. Deixei as médicas trabalharem e só olhava para a minha Apressada, ali ao lado, mas ao mesmo tempo tão longe de mim.

Nesta altura o pai tem mais sorte. Pôde estar ao lado dela, tirou as primeiras fotos. Eu ali na cama a ver tudo, mas sem poder fazer nada. Vi darem-lhe o biberão, ouvi as primeiras dúvidas e depois a decisão final: a bebé vai para a Neonatologia.

Nos recém-nascidos um sinal de que as coisas não estão bem é quando eles começam a gemer e a Luísa estava assim. Veio a incubadora e só me deixaram dar-lhe um beijinho e levaram-na logo. Fiquei inconsolável. Nem na minha filha tinha pegado. Só a tinha tido em cima de mim meia dúzia de segundos, com os pés virados para a minha cara e agora já a iam levar para longe de mim. Não vos consigo dizer o que senti, o fundo a que se desce, a tristeza que se instala. Dez semanas de luta para mantê-la cá dentro, passar por um parto relâmpago e doloroso e depois sentir-me vencida por algo que levou a minha filha para longe de mim.

Depois de levarem a Luísa ainda fiquei cerca de duas horas na sala de partos a recuperar. Quando subi à enfermaria e vi que me iam mandar para um quarto sozinha só agradeci. Ter ido para um quarto conjunto e ver outras mães com os bebés ao lado e eu sozinha ia ser demasiado doloroso.

Pouco dormi com as dores corporais e as da alma, mas no dia seguinte teria de enfrentar a minha nova realidade: mãe de uma prematura internada na Neonatologia. E não há nada que nos prepare para isto.