16 de Março
Daqui a uns anos quando leres este diário, Luísa, talvez notes que
durante uns dias a mãe não escreveu. Escrever e falar da nossa jornada é uma
terapia, mas este fim de semana não deu, não consegui. A neura começou a moer
na sexta à noite e sábado instalou-se por completo.
Quando acordei e vi o sol lindo que estava lá fora apeteceu-me tanto,
mas tanto andar na rua, passear, respirar ar fresco e não este ar quente de
trópicos falsos. Senti uma inveja tão grande (a inveja é um sentimento feio,
Luísa…) das pessoas que via na rua pela janela e desejei tanto, mas tanto puder
caminhar e estar a fazer o mesmo que elas.
Começou então a crescer em mim uma inquietação, um desespero. Doía-me
estar aqui dentro. E já estou farta de frases feitas, como “é tudo por uma boa
causa”. Não sou a Madre Teresa de Calcutá (nem ambiciono) e há dias em que apetece
mandar tudo às favas. Ser incubadora humana custa horrores, às vezes…quase
sempre.
Mas pronto o dia foi passando e lá fui amassando os sentimentos.
O domingo chegou e de novo o sol radiante lá fora. Não ia ser fácil
aguentar mais um dia encerrada neste quarto. Muitas pessoas não têm noção, mas
nós nunca passamos se quer da porta do nosso quarto para fora pelo nosso pé. Só
saímos para ir fazer exames e vamos na cama ou de cadeira de rodas.
O dia começa sempre com os traçados (já estamos tãoooo saturadas de os
fazer três vezes ao dia). Eu estava naqueles dias em que não queria ver
ninguém, não queria falar com ninguém, mas quando se está num quarto com outras
pessoas isso é impossível.
À ronda das médicas, a minha colega da frente que a tanto custo tinha
conseguido conquistar o repouso relativo (ir tomar banho e fazer xixi) foi
informada, que por ter sangrado durante a noite, ia voltar ao repouso absoluto
(não sair da cama para NADA). Ninguém imagina como custa tomar banho na cama e
ter de chamar sempre as auxiliares com a aparadeira sempre que se quer fazer
xixi, dia após dia. A tristeza dela desfez-se em lágrimas e abriu as portas da
minha.
Tudo o que tinha atafulhado cá para dentro saiu para fora sem
controlo. Chorei a tomar banho, deitei-me na cama e continuei a chorar. E quanto
mais tentava parar mais chorava e mais nervosa ficava. Estava quase a mandar
uma mensagem à minha mãe a dizer para o meu pai não me vir ver de manhã, quando
ele me aparece quarto dentro. Já sabia que ele ia ficar com o coração nas mãos.
Não consegue ver-me a chorar ou triste. O coração quebra. Lá tentou animar-me
um bocado, mas não foi fácil.
Quando se foi embora mandei uma mensagem à minha mãe a dizer que não
queria visitas, não estava em condições, não ia atender o telemóvel a ninguém.
Só aceitava ver os meus pais e o J.
O almoço foi comido a custo e pedi desculpa pela minha versão Maria
Madalena às minhas colegas de quarto, que foram umas companheiras de ouro,
porque mesmo me vendo assim não me tentaram animar com aquelas frases feitas e
respeitaram o meu espaço e o meu estado de espírito.
De tarde só veio então o J. e a minha mãe, que me esteve a mostrar as
coisas que tinha comprado no dia anterior e que ainda me estavam a faltar no
enxoval.
Lá me foram conseguindo distrair e a tristeza foi-se indo embora,
devagarinho.
Há mais de um mês que a minha vida (que já nem é minha) gira à volta
de ti, Luísa. A nossa aldeia tem-se desdobrado em apoio e ajudas, mas ninguém
sente na pele como eu. Não é querer fazer-me de vítima nem culpar-te por isto,
mas nunca gostei de guardar emoções e quando as guardo depois fico como que
descompensada. Sempre tive o coração na boca e para continuar bem tem de ser
assim. Há demasiada coisa que me assusta, que me preocupa, que me deixa
insegura neste processo todo, filha.
Depois estou cansada de andar de pijama o dia inteiro, de não caminhar
mais de 20 passos, de fazer traçados três vezes ao dia, de ter sobressaltos a
cada hora, de ser a primeira barreira a levar com as más notícias (mas as boas
também), de ver as pessoas a irem e a virem e eu continuar aqui.
É muito duro lidar com isto tudo e, sobretudo, num lindo dia de sol,
mas dias mais positivos virão.
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