24 de Abril
21 de Abril. O dia em que
mudaste a vida do teu pai e a minha para sempre.
Há umas semanas apelidei-te de Apressada e não poderia ter escolhido
melhor nome, porque de facto foste apressada em tudo e vieste ao mundo
precisamente um mês antes da data prevista e quando eu menos esperava.
Mas comecemos pelo princípio.
A noite de segunda para terça-feira não foi fácil. Depois de duas idas
à casa de banho, às 04h já não conseguia dormir e para não acordar o teu pai
fui para o sofá da sala. Não sentia dores nem nada de semelhante, apenas não
tinha sono apesar do cansaço. Agora começo a pensar que talvez fosse o corpo da
mãe a começar a entrar em ebulição.
Já na terça-feira, depois do almoço, comecei a sentir uma espécie de “cólicas”,
o que para mim era normal depois do almoço. Com o teu crescimento foste
empurrando os meus intestinos sabe-se lá para onde e depois das refeições tinha
sempre dores. Mas começaram a ser tão intensas que comecei a desconfiar e a
partir das 14h fui controlando de quanto em quanto tempo surgiam. Ainda
consegui passar pelas brasas, o que na minha cabeça quis dizer que aquilo não
eram nada contrações, caso contrário não era possível adormecer.
Às 16h quando me levantei do sofá para ir à casa de banho senti que fazia
xixi pelas pernas abaixo. Nessa altura o meu pensamento foi ou rebentaram-me as
águas ou já não me sinto e acabei de fazer xixi mesmo estando a apertar…
Nada de pânico. Nada de histeria. Só por descargo de consciência sabia
que tinha de ir ao Hospital. Liguei primeiro à minha médica, mas não atendeu.
Depois liguei ao J. para vir para casa para irmos ao Hospital, pois eu achava
que possivelmente me tinham rebentado as águas. Em seguida liguei à minha amiga
J., mais experiente nestas andanças, a ver o que ela achava da situação.
Por esta altura, nos filmes, as pessoas ficam alteradas e a correr de
um lado para o outro. Não vale a pena! A calma é a melhor conselheira.
Até o J. chegar basicamente estive sentada na sanita, porque sempre
que me levantava parecia surgir um rio de dentro de mim. A esta hora já
acreditava que me tinham rebentado as águas e que a Luísa iria nascer. Se
fiquei nervosa? Curiosamente, não. Nunca pensei conseguir manter a calma por
completo, mas consegui. Talvez o facto de conhecer bem os cantos à casa tivesse
ajudado.
O J. agarrou nos três sacos com todas as tralhas para a maternidade e
às 16h30 já estávamos a dar entrada pelas Urgências, seguindo depois para o
Núcleo de Partos. Entretanto, consegui falar com a minha médica que logo por
azar não estava de serviço, mas que ligou às colegas a avisar que eu ia dar
entrada. Alívio…
No Núcleo primeiro fui observada pela Dr.ª C. “Já vejo cabelo”,
disse-me ela. Ora bolas, já?? Eu sabia que uma vez que já tinha 3cm de
dilatação há quase duas semanas era provável que agora tivesse mais, mas daí
até já se ver o teu cabelo, Luísa…
É nesta altura que uma pessoa começa a ter medo que a criança nos
escorregue pelas pernas abaixo. Era bom, era. Talvez lá para o terceiro ou
quarto rebento… Estou a brincar J.!
Por esta altura comecei a sentir umas ligeiras dores, mas antes de
passar à sala de partos ainda uma enfermeira teve que me fazer uma série de
procedimentos. Só que nesta fase as minhas contrações começaram a sério e
fazerem-me perguntas tipo, quando foi a minha última menstruação ou o dia da
minha primeira ecografia é tortura. Nesta fase apeteceu-me partir para os
insultos. “Mas que c****** queres tu saber disso agora, quando eu estou aqui
toda molhadinha e a torcer-me com dores?”. Mas não disse, só pensei e devo ter
feito aquele olhar da menina do Exorcista antes de rodar a cabeça.
Depois de umas 20 questões, pedi à enfermeira se ainda tinha tempo
para ir à casa de banho que estava aflitinha para fazer o número 2. “Nem pense,
mulher! Isso é o bebé a querer sair, você não pode ir à casa de banho”.
Então ainda há meia hora entrei aqui toda serena e agora já me estou
aqui a contorcer e a dizerem-me que já é o bebé a sair? Não percebo. Não dizem
que normalmente o primeiro filho demora a nascer e que às vezes as mães estão
horas, dias com as contrações? Já não entendia nada…
A enfermeira tentou que eu me levantasse da cadeira para ir para a sala
de partos, mas tarefa impossível. As minhas dores eram tantas que eu não
conseguia estar em pé. Tive de ir de cadeira de rodas. Por esta altura, já
tinham chamado o J. que até aqui tinha estado na sala de espera.
A chegada da Luísa era agora mesmo uma realidade. Não havia
escapatória.
As dores que eu sentia eram horríveis, cada vez mais fortes, cada vez
mais frequentes. Davam-me uns 10 minutos de descanso e voltavam em toda a sua
potência. Eu só pensava em todas as mulheres que tinham tido filhos sem
anestesia. Eu estava em desespero. Nunca tinha sentido nada assim. Intenso,
carnal, que se apodera de todos os nossos átomos.
A sala de partos surpreendeu-me por se parecer a um quarto normal,
cuja única diferença é ter a cama com os cavaletes, uma série de máquinas e uma
espécie de salinha para o bebé.
Começaram-me a preparar e quando eu vejo a entrarem no quarto as duas
enfermeiras que eu menos gostei durante os meus dois internamentos pensei que
era gozo. Tanta enfermeira naquele serviço e tinham de me calhar a mim e logo
as duas? Só podia ser castigo.
Com as contrações cada vez mais juntas chamaram a médica anestesista.
Epiduraaaaal! Pensava eu. Minhas queridas, anotem bem isto nos vossos diários, grafitem
nas paredes do quarto, mandem a NASA escrever na Lua: NUNCA FAZER UMA TATUAGEM
AO FUNDO DAS COSTAS! NUNCA!
“Ora que coisa bonita aqui tem. Mesmo no sítio indicado”, disse ironicamente
a médica anestesista sobre a minha tatuagem. Fiquei confusa, porque a minha
médica tinha-me dito que a epidural era dada mais acima e que não seria
problema. Silly me! (Luísa, nem penses em fazer uma tatuagem nas costas. A mãe
não deixa, é pelo teu bem.)
Não sei se essa foi mesmo a razão, mas a médica não me conseguiu dar a
epidural e teve de ir para o plano B: uma raquianestesia. Nunca tal tinha
ouvido, mas queria lá saber desde que me aliviasse as dores, por mim estava
tudo bem.
Depois de ter uma enfermeira a agarrar-me nas pernas e na cabeça,
enrolando-me como se eu fosse um caracol, para eu não me mexer quando tinha
contrações e a médica me dava a anestesia a ausência de dor quase imediata
levou-me ao nirvana. Pensei que estava no céu.
Por essa altura, mandaram entrar novamente o J. que não pode assistir
à anestesia, como é habitual, e a médica explicou que com aquela anestesia
teriam uma janela de cerca de duas horas para fazerem o parto. Iam-me deixar a
descansar um bocado e dali a um hora estariam de regresso.
Entretanto, num quarto ao lado uma mãe começou mesmo a dar à luz e foi
toda a equipa assistir a senhora. Ficamos os dois sozinhos.
Não sei o que se passou, só sei que passado meia hora de me terem dado
a anestesia comecei a sentir de novo dores na parte esquerda do corpo, apesar
das pernas estarem completamente paralisadas. Oh diabo! Mas isto não ia durar
pelo menos duas horas? Não era bom sinal.
Entra então no quarto a enfermeira com o mesmo nome da minha Apressada
e vendo que eu estava já com muita dilatação e a ter novamente dores iniciou o
parto. Mandava-me puxar, quando aparecia no monitor uma contração e ia
posicionando a bebé para que saísse mais facilmente. Foi este anjo, que enxotou
as duas enfermeiras que eu não gostava nada e que entretanto já tinham feito o
outro parto e vinham cheias de gás para mim. Back off, que é a enfermeira Luísa
que vai tratar de mim!!
Com o outro parto terminado, regressou ao meu quarto a equipa toda.
Basicamente era eu deitada na cama, o J. ao meu lado, duas médicas de frente e
umas dez pessoas a olhar, entre enfermeiras, pediatra, estagiárias. Só faltavam
as pipocas.
Depois da enfermeira Luísa ter conseguido posicionar melhor a minha
Apressada, a Dr.ª S. começou a trabalhar comigo. Puxe agora. Encha os pulmões
de ar e faça força. Respire fundo e força. Puxe o máximo que consiga. Pai
empurre a barriga da mãe para a bebé não subir. Faça força na barriga. Puxe
mais, mais. Agarre-se às pernas.
Em pouco tempo estava completamente estourada, sem pinga de força e a
cabeça da bebé ali a espreitar. Foi hora de chamar a amiga ventosa. Eu sei que
muita gente estremece com esta palavra, mas para mim foi a abençoada ventosa.
Com a ventosa na cabeça da bebé, fiz força só mais uma vez e a rapariga
estava cá fora.
Ter uma criança é a tarefa mais difícil do mundo. Suga-nos toda a
energia do corpo, obriga-nos a dores excruciantes, levam-nos ao limite do
inimaginável, absorve-nos, mas depois – e agora vêm as frases feitas – quando vemos
aquele pequeno ser à nossa frente fica tudo bem.
A primeira coisa que vi da Luísa foram os pés, quando a pousaram em
mim. Logo cortaram o cordão umbilical (nem deram oportunidade ao J. de o fazer,
não sei porquê) e levaram-na para o espaço ao lado. Mal ouvimos o choro dela,
ficamos os dois mais sossegados.
Mas alto lá, que o parto ainda não terminou. Já quase sem anestesia
nenhuma no corpo ainda tive que expelir a placenta (doeu-me horrores) e em
seguida começou a verdadeira renda de Bilros, como lhe chama a minha amiga J.,
que é quando as médicas pegam na agulha e fio e começam a coser-nos. Eu não
tinha um pingo de força em mim. Deixei as médicas trabalharem e só olhava para
a minha Apressada, ali ao lado, mas ao mesmo tempo tão longe de mim.
Nesta altura o pai tem mais sorte. Pôde estar ao lado dela, tirou as
primeiras fotos. Eu ali na cama a ver tudo, mas sem poder fazer nada. Vi
darem-lhe o biberão, ouvi as primeiras dúvidas e depois a decisão final: a bebé
vai para a Neonatologia.
Nos recém-nascidos um sinal de que as coisas não estão bem é quando
eles começam a gemer e a Luísa estava assim. Veio a incubadora e só me deixaram
dar-lhe um beijinho e levaram-na logo. Fiquei inconsolável. Nem na minha filha
tinha pegado. Só a tinha tido em cima de mim meia dúzia de segundos, com os pés
virados para a minha cara e agora já a iam levar para longe de mim. Não vos
consigo dizer o que senti, o fundo a que se desce, a tristeza que se instala.
Dez semanas de luta para mantê-la cá dentro, passar por um parto relâmpago e
doloroso e depois sentir-me vencida por algo que levou a minha filha para longe
de mim.
Depois de levarem a Luísa ainda fiquei cerca de duas horas na sala de
partos a recuperar. Quando subi à enfermaria e vi que me iam mandar para um
quarto sozinha só agradeci. Ter ido para um quarto conjunto e ver outras mães
com os bebés ao lado e eu sozinha ia ser demasiado doloroso.
Pouco dormi com as dores corporais e as da alma, mas no dia seguinte
teria de enfrentar a minha nova realidade: mãe de uma prematura internada na
Neonatologia. E não há nada que nos prepare para isto.
:') És tão grande!
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